terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

O REINO DE VALDECACOS

Os seres humanos deslocam-se de sul para norte, de leste para oeste, de reino para reino, em busca de pão e de um futuro melhor.
O sítio onde nascem não passa duma fatalidade e quando crescem e começam a tomar consciência do que os rodeia, verificam que só a alguns deles parece permitido o direito a viver. Alguns conformam-se, inclinam-se perante poderes e conceitos enraizados há milénios, continuam submissos humildes e resignados, desde que nascem até que morrem, olhando pacientemente a vida que levam os ricos e poderosos e que para eles será sempre algo de inatingível…
Outros porém não se resignam com esta facilidade, quando entendem que a terra em que nasceram e lhes ensinaram a amar, é mãe apenas para uma pequena minoria e madrasta para os restantes. Por isso partem, emigram, atravessam rios montanhas e oceanos, vão de continente em continente, em busca do seu pão. Gente pobre e inculta, mas corajosa e determinada, sujeitou-se a todas as vicissitudes, trabalhando de sol a sol, comendo o pão que o diabo amassou, para um dia poder saborear os frutos do conforto e da qualidade de vida, que outros homens colhem às mãos cheias sem esforço de maior.
O condado Portucalense e todos os seus reinos, Valdecacos inclusive, viram o fenómeno da emigração levar os seus filhos, e ao contrário do que vi escrito por um velho cronista deste reino, a propósito do recém inaugurado monumento ao emigrante a palavra por ele utilizada de povoamento, relacionada com a emigração, é completamente despropositada! Despovoamento é a palavra correcta.
Houve várias fases e diversos destinos do problema da emigração que assolou o reino de Valdecacos. Em fins do sec. XIX e princípios do sec. XX, o reino do Brasil foi a principal meta. Nos anos trinta e quarenta do século passado foi a emigração organizada pelo Estado Novo para as ex. colónias de Angola e Moçambique, com a implementação dos colonatos da Cela e do Limpopo respectivamente. Mas foi essencialmente nos fins da década de cinquenta e nas décadas de sessenta setenta que se deu a grande emigração “a salto” para o reino da França sobretudo, mas também para a Alemanha, Suíça, Luxemburgo, e.t.c.
Na principal rotunda do reino de Valdecacos (assim classificada por Dom Pires Zás Trás, que também sugere seja chamada rotunda do emigrante) foi inaugurado um monumento escultórico de homenagem ao emigrante, composto por um homem que com determinação parte em busca duma vida melhor, trilhando os longos e sinuosos caminhos da emigração (representados pelas vigas de ferro), e uma mulher com duas crianças, que aguardam ansiosamente e com imensa saudade o seu regresso. Esta é a leitura que eu faço do conjunto e julgo que não andarei longo daquilo que o artista nos quis transmitir.
Como todas as obras de arte, esta também tem suscitado as mais diversas opiniões, acerca do conteúdo, da forma, e da localização. Este deve ser com certeza o centésimo monumento ao emigrante que é inaugurado, só no norte do país, já não falo no centro nem no sul. Se é que a minha opinião vos interessa para alguma coisa, devo dizer-vos que o monumento no seu todo em termos de obra de arte me agrada. Já o mesmo não digo em relação à localização que não me parece a mais adequada em termos de espaço e enquadramento para aquele tipo de escultura.
O reino de Valdecacos já tem um monumento ao emigrante!!! Tal como outras obras, estradas, pavilhões, e.t.c., concebidas e planeadas no já longo consulado de Dom Xico Mirandum, chegou com vinte anos de atraso, imitando nem sempre da melhor maneira aquilo que há muito se faz noutros reinos, não há uma ideia nova, um rasgo de inteligência, algo que nos diferencie no bom sentido.
As individualidades do costume juntaram-se para assistir à cerimónia de inauguração, que foi presidida pelo Governador Civil do reino do Marão, Dom Tótó São Martinho. Os presidentes dos governos do reino da Flávia e de Monte Triste também marcaram presença. A falta do Visconde de Valverde Dom Vitinho Córócócó e da Marquesa de Campo D’egua Dona Carmensita Tramas, quase passou despercebida. Pelo contrário o Marquês de Calavinhos Dom Milkes Varredor está em todas e sempre em bicos de pés… Alguns alcaides e deputados às cortes marcaram presença, na esperança dum lanchesito que afinal não aconteceu. Em lugar destacado estiveram o Visconde da Noruega Dom Abilio Morcão (grande abastecedor da despensa dos emigrantes nos tempos das divisas fortes), e Dom Correo Arrepiado (provavelmente em representação da Confraria, que toma conta dos ex-emigrantes, quando gastos, cansados e decrépitos, não têm quem lhes chegue uma malga de caldo). Surpreendeu-me ver o Marquês do Pereiro dom Alfonso de La Niña, homem pouco dado a este tipo de manifestações e com discurso social que não se coaduna com os milhares de euros gastos numa obra de arte, em tempos de crise como o que vivemos! Talvez quisesse agradecer a preferência que os emigrantes vêm demonstrando ao longo dos anos em consultá-lo no mês de Agosto.


P.S: Já por duas ou três vezes pela calada da noite, alguém colocou uma mala ao lado da figura do emigrante. Mistério!! Vários significados quiseram atribuir ao facto. Imensas conjecturas se fizeram. Afinal tratou-se apenas duma singela homenagem ao presidente das cortes do reino de Valdecacos, Dom Juanito de La Bisabuela, que em tempos que já lá vão, algumas vezes teve de emigrar de noite com a mala na mão.

Até Breve
Publicado no jornal "Tribuna Valpacense" em 20 de Janeiro de 2009